PIRUÇAS

Abril 10 2008

Uma prova de que as "coisas"  (todas, sublinho!) já não são hoje o que eram, tive-a ontem, quando me quis armar em sabedor das coisas da História e confundi a data do final grande guerra de 14-18 com a data da memorável batalha de La Lys , ocorrida nesse trágico acontecimento, exactamente no dia 9 de Abril de 1918.

Logo  tinha de ser eu a confundir as "coisas"  -eu que sempre me vangloriava por possuir uma excelente memória, nomeadamente para as "coisas" da História.

Para castigo e reencontrar algum conforto íntimo, passei boa parte da manhã de hoje a reler um dos livros de poemas de José Régio, que tenho sempre à minha cabeceira -Poemas de Deus e do Diabo. E, como sempre acontece nestas diligências de reencontrar bom reconforto, deixei-me emocionar, mais uma vez,  pelo Cântico Negro, o poema que, a seguir, transcrevo , na íntegra. Ainda hoje, desde a adolescência, é a minha cartilha de vida.

 

 

Cântico Negro


"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"

Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém. 
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!

A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...

Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!


publicado por poleao às 14:27

TÃO LONGE DO MUNDO E TÃO PERTO DE TUDO
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